Que tipo de liberdade ou liberdades tem uma pessoa LGBTQIA+ nas comunidades mais pobres do país? Este é o questionamento que o professor e pós-Doutor em antropologia social pela Universidade de Harvard, Moisés Lino e Silva, busca elucidar ao longo de Liberalismo Minoritário – Vida Travesti na Favela, publicado pela editora Almedina Brasil. A obra, lançada originalmente em inglês pela Universidade de Chicago em 2022, é fruto de uma pesquisa etnográfica realizada na Rocinha, a favela mais populosa do Brasil, e discute como as práticas e os discursos liberalistas se configuram no dia a dia de pessoas queers marginalizadas.
Para mergulhar na dinâmica da favela e entender os comportamentos, as crenças, os costumes e os posicionamentos dos integrantes da comunidade, o autor decidiu morar no lugar. Lá, tornou-se amigo da travesti Natasha Kellem, personagem que conduz as reflexões apresentadas e traduz em carne e osso o conceito de “liberalismo minoritário” evidenciado por Lino e Silva. Essa concepção representa modos alternativos e sobrepostos de liberdade que encontram fôlego mesmo diante das adversidades e das opressões.
Em minhas andanças com Natasha, porém, deparei-me com liberalismos que não foram criados pelas elites para protegerem as próprias elites. Os moradores de favelas também têm seus modos de política liberal, que, em algumas comunidades, são distintos de outras.
Na própria Rocinha, alguns moradores estavam mais preocupados em obter uma forma radical de liberdade a qualquer custo. Durante minha pesquisa de campo, certa vez, estava conversando com um aluno do curso de inglês básico que eu ministrava na favela. Ele era um ex-traficante de drogas e contava sobre suas experiências: Bora pegar as armas! Doido pra caralho. Pra nós, era assim, liberdade, prisão ou morte!
Outros moradores da favela, no entanto, eram mais céticos quanto à possibilidade real de adquirir liberdade por meio da violência, e estavam mais confiantes no poder de Jesus, com muita fé e desejo de libertação espiritual. Comecei a traçar todas essas experiências diferentes na Rocinha, mesmo quando pareciam incomuns para mim.
Para o autor, o liberalismo normativo, aquele absorvido mundialmente como uma corrente econômica, promoveu e ainda promove a liberdade de sujeitos privilegiados e com direitos – geralmente brancos, adultos, heteronormativos e burgueses – às custas de grupos marginalizados, como negros, crianças, pessoas LGBTQIA+, pobres, indígenas e camponeses. Estas minorias, porém, mesmo diretamente afetadas pelo preconceito e pela falta de oportunidades constroem narrativas próprias, livres das amarras impostas socialmente.
Ele destaca, por exemplo, como aqueles que vivem no “asfalto” precisam buscar a respeitabilidade, mesmo que se identifiquem como uma minoria, enquanto na favela “tudo é possível”. Uma dessas possibilidades descritas no livro é a convivência da população LGBTQIA+ do morro com os integrantes do tráfico. Segundo Lino e Silva, é comum que os traficantes não só defendam estes indivíduos de violências como também integrem estas pessoas nas festas que promovem, em um movimento “queer-friendly”.
Liberalismo Minoritário – Vida Travesti na Favela apresenta, ainda, as diferentes compreensões de liberdade para os grupos que vivem marginalizados, como a busca por empoderamento e realização por meio da vida criminosa e a sensação de comunidade e pertencimento promovida pela construção de laços religiosos. O livro é um convite para compreender os diferentes papéis exercidos pelas minorias, que mesmo na opressão são capazes de articular as próprias vontades para realizar sonhos ou mesmo sobreviver em uma realidade em que até os direitos mais básicos são negados com frequência.